Que todos sejam um: uma conversa sobre o Ecumenismo - HISTÓRIA
O ponto de partida dessa parte histórica, a base da unidade, ou melhor, a própria unidade/comunhão: Deus. Relembrando a súplica de Jesus pela unidade “Ut Unum Sint” (Jo 17,21), e assim iniciar o “percurso ecumênico”.
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03.01.2024 08:00:00 | 8 minutos de leitura

Padre Rafael Pedro Susrina, psdp
Os apóstolos e os discípulos de Jesus, os primeiros cristãos, buscaram viver a perfeita unidade desde o início do seguimento. A Igreja, desde a origem, realçou a Unidade como uma de suas notas (características), juntamente com Santa, Católica e Apostólica, sempre presente nos antigos credos – profissões de fé. A unidade, a todo momento, era exaltada como o fermento, o sinal e o vínculo da verdadeira Igreja. Pois o primeiro princípio de unidade da Igreja e sua razão fundamental encontram-se na unidade e na unicidade de Deus.
Os Atos dos Apóstolos narram que a primeira comunidade cristã “mostrava-se assídua ao ensinamento dos apóstolos, a comunhão fraterna, a fração do pão e as orações” (2,42). Viviam a unidade no dia a dia, nas pequenas coisas, não se preocupando com os desejos pessoais, mas, sim com o irmão, o outro Cristo. As diversas Cartas, como o próprio Atos dos Apóstolos, trazem também as dificuldades na vivência da unidade. O apóstolo Paulo na carta aos Efésios (4,1-16) faz um apelo a unidade:
Exorto-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, a andares de modo digno da vocação a que fostes chamados: com toda humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros com amor, procurando conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, por meio de todos e em todos (Ef 4,1-6).
A busca pela unidade, comunhão, na origem da Igreja também não deve ser vista como algo fácil, sem dificuldade. Era necessário o profundo auxílio do Espírito Santo para revigorar e conduzir os membros da Igreja nascente, deixando de lado qualquer tendência contrária a perfeita comunhão de Deus com a humanidade. E fortalecendo ela a cada dia, evitando as situações e contextos que pudessem favorecer a divisão e o confronto.
Em todo o Novo Testamento observa-se que o plano de Deus para a humanidade é de que esta se reconheça e viva como uma só família; e o tema da unidade é central no projeto de Deus sobre a Igreja e a humanidade. Por isso, a contradição de viverem divididos os discípulos de Jesus, obscurece a doação de sua vida pela unidade. A qual não faltam exortações: “Eu vos exorto, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo: guardai a concórdia uns com os outros, de sorte que não haja divisões entre vós; sede estreitamente unidos no mesmo espírito e no mesmo modo de pensar” (1Cor 1,10). Não é objeto desse momento elucidar as formas de divisão, mas simplesmente evidenciar sua existência desde a primeira comunidade cristã. O desejo e a busca permanente pela unidade são muito maiores, pois brotam da vontade de Deus, do âmago da mensagem cristã.
O anúncio da mensagem cristã a outros povos, culturas, fez com que a Boa-Nova de Jesus chegasse a outras cidades e nestas fossem estabelecidas comunidades: Antioquia, Alexandria, Egito, Éfeso, Roma, Norte da África, Espanha, Mesopotâmia, Índia... Nos primeiros séculos, os apologetas e depois os Padres da Igreja ajudaram a Igreja a conservar uma coerência teológica e espiritual, mantendo-a unida diante dos mais diversos perigos e exaltando a diversidade dos membros. Entretanto, esse posicionamento não evitou a tentação constante de partidos, receios e separações menores. Antes da ruptura oficial entre Roma e Constantinopla, ocorreram outras separações de Igrejas por não concordarem com determinados dogmas conciliares, vivendo assim separados das grandes tradições do Oriente e Ocidente por anos. Buscar-se-á resumir alguns aspectos das duas grandes rupturas, sem o objetivo de resolver ou induzir a uma conclusão, mas trazendo os pontos chave.
A ruptura entre Roma e Constantinopla (1054) significa a perda de comunhão da, até então, Igreja indivisa presente no Ocidente e Oriente. Existem vários fatores possíveis para explicar essa ruptura. No político pode-se ressaltar três decisivos: “a transferência da sede imperial de Roma para Bizâncio (séc. IV), a entrada dos povos bárbaros no ocidente (séc. V) e a invasão muçulmana em grande parte do Ocidente (séc. VII)” (NAVARRO, 1995, p. 85). No fator cultural, Ocidente e Oriente, são dois mundos espiritual e culturalmente distintos, e essa diversidade que não deveria gerar ruptura, lamentavelmente aumentou, de ambas as partes, as incompreensões por falta de um diálogo sério. A geografia também tem um papel importante, pois “o fato de o imperador residir em Bizâncio e o papa em Roma cria uma tensão, muito sutil no princípio, mas cada vez mais perceptível. A influência do islamismo no ‘Mare nostrum’, [...] faz com que esse lugar de encontro e de fáceis comunicações deixe de existir” (NAVARRO, 1995, p. 87). O fator da concepção eclesiológica (organização eclesiástica) e as relações dela com a autoridade política são distintas, “um choque entre dois princípios distintos referentes a organização da Igreja: o princípio de ‘acomodação’ à divisão política do império e o princípio da origem apostólica e petrina das sedes episcopais” (NAVARRO, 1995, p. 88). E por fim, o fator doutrinal é a cereja do bolo, na qual a questão do Filioque e a do Primado romano, por falta de diálogo sobre esses assuntos resultam no distanciamento cada vez mais profundo, levando ao Cisma.
A ruptura na Igreja do Ocidente (séc. XVI) designada como “Reforma” balança a Cristandade e atinge a substância da fé.
Foram feitas muitas leituras que procuram explicar o fenômeno da Reforma – leituras confessionais do passado feitas do ponto de vista da polêmica e leituras mais recentes, confessionais ou não, elaboradas com o sentido crítico do historiador leal ou do teólogo fiel a investigação realizada com rigor que tenta penetrar nas verdadeiras intuições dos reformadores. Partimos de um fato constatado na historiografia da Reforma e confirmado pelos melhores especialistas do tema: nenhuma das explicações oferecidas basta, em si mesma, para dar conta, de modo total, do fenômeno da Reforma. Será preciso considerar, portanto, que no início do século XVI há a convergência de uma série de circunstancias de diversas espécies – históricas, politicas, teológicas, culturais etc -, preparadas já há muito tempo, que possibilitam que instituições e programas religiosos opostos a Roma sejam escutados e levados a sério, cheguem depois a formar comunidades ‘reformadas’ com certa ambiguidade de pertinência eclesial e se cristalizem, por fim, em Igreja separadas da grande comunidade católica (NAVARRO, 1995, p. 90).
Dentre as explicações que estão na base da Reforma temos os abusos cometidos pela Igreja; a política, e o sentimento nacionalista; a economia, e sua crise; e por fim questões teológicas e religiosas (NAVARRO, 1995, p. 90-95). E a partir dessa ruptura, a Igreja dividiu-se ainda mais, perdendo cada vez mais sua unidade. Algumas das divisões: em 1517 – Luteranos; 1533 – Calvinistas; 1534 – Anglicanos; 1536 – Anabatistas. Por volta de 1560 já existem territórios claramente definidos: católicos, luteranos e calvinistas. Nos séculos seguintes surgem outros grupos: XVII – Batistas, Quacres, Presbiterianos; XVIII – Metodistas, Irmãos Morávios, Jansenistas; XIX – Mórmons, Velhos-Católicos, Aliança Cristã e Missionária, Discípulos de Cristo, Assembleia dos Irmãos, Meninos de Deus, Igreja Nova Apostólica, Adventistas do Sétimo Dia; XX – principalmente as Comunidade de cunho pentecostal: Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil, O Brasil para Cristo, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Deus é Amor, Igreja da Nova Vida, Igreja Universal do Reino de Deus e outras (cf. CAMBÓN, p. 31 e HORTAL, p. 37-88)
Retomando o ponto de partida dessa parte histórica, a base da unidade, ou melhor, a própria unidade/comunhão: Deus. Relembrando a súplica de Jesus pela unidade “Ut Unum Sint” (Jo 17,21), e assim iniciar o “percurso ecumênico”.
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Os próximos artigos continuarão a desvendar um pouco mais a História do Ecumenismo:1. Precedentes Do Concílio Ecumênico Vaticano II2. Decreto Unitatis Redintegratio do Concílio Ecumênico Vaticano II3. Período Pós-Conciliar: Carta Encíclica Ut Unum Sint
Referências bibliográficasCAMBÓN, Enrique. Fazendo ecumenismo: uma exigência evangélica e uma urgência histórica. São Paulo: Editora Cidade Nova, 1994. 223 p.HORTAL, Jesús. E haverá um só rebanho: história, doutrina e prática católica do ecumenismo. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1989. 271 p.NAVARRO, Juan Bosh. Para compreender o ecumenismo. São Paulo: Edições Loyola, 1995. 239 p.
Exorto-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, a andares de modo digno da vocação a que fostes chamados: com toda humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros com amor, procurando conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, por meio de todos e em todos (Ef 4,1-6).
Foram feitas muitas leituras que procuram explicar o fenômeno da Reforma – leituras confessionais do passado feitas do ponto de vista da polêmica e leituras mais recentes, confessionais ou não, elaboradas com o sentido crítico do historiador leal ou do teólogo fiel a investigação realizada com rigor que tenta penetrar nas verdadeiras intuições dos reformadores. Partimos de um fato constatado na historiografia da Reforma e confirmado pelos melhores especialistas do tema: nenhuma das explicações oferecidas basta, em si mesma, para dar conta, de modo total, do fenômeno da Reforma. Será preciso considerar, portanto, que no início do século XVI há a convergência de uma série de circunstancias de diversas espécies – históricas, politicas, teológicas, culturais etc -, preparadas já há muito tempo, que possibilitam que instituições e programas religiosos opostos a Roma sejam escutados e levados a sério, cheguem depois a formar comunidades ‘reformadas’ com certa ambiguidade de pertinência eclesial e se cristalizem, por fim, em Igreja separadas da grande comunidade católica (NAVARRO, 1995, p. 90).
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