Como estão nossas ‘aldeias’ educativas calabrianas?
Quando nossas aldeias educativas se tornam espaços de escuta, acolhida e fraternidade, a esperança renasce e a paz encontra morada.
Artigos
09.04.2025 11:11:42 | 8 minutos de leitura

Nestes dias uma preocupação me tirou o sono: “Para onde estamos caminhando como humanidade?” Nos últimos dias, ficamos profundamente chocados com o caso de uma professora de 34 anos, em Caxias do Sul/RS, que foi esfaqueada por dois jovens estudantes, um de 14 e outro de 15 anos. Felizmente, ela sobreviveu e está em recuperação.
Como Família Calabriana, queremos, por um lado, manifestar todo nosso apoio e solidariedade à professora. Por outro, precisamos expressar também nosso profundo lamento enquanto humanidade, ao nos depararmos com situações de violência que chegam a este ponto. E este é apenas um caso entre tantos que se repetem diariamente no Brasil e no mundo. As circunstâncias e desdobramentos do episódio ainda estão sendo apurados pelas autoridades competentes, mas há indícios de que o ato violento tenha sido motivado por ‘divergências’ ou ‘retaliação’.
Sim, a violência é tão antiga quanto a própria história da humanidade. No entanto, isso não pode nos deixar acomodados. Os milhares de anos de evolução da vida humana já deveriam ser suficientes para termos aprendido a olhar e tratar o outro como irmão e irmã, como companheiros de jornada, como seres humanos que são — com respeito e dignidade.
Escrevo porque acredito que esta preocupação e esta indignação sejam partilhadas por muitos de nós, e que possam nos fortalecer e mobilizar em nossa missão como educadores e educadoras. Precisamos refletir, pessoal e coletivamente, sobre tudo isso. Este caso não pode ser apenas “mais um”. Que bom que ainda somos capazes de nos comover, de nos sensibilizar… Isso é sinal de que ainda resta em nós um resquício de verdadeira humanidade. E é justamente isso que nos move: a fé na vida e a fé na humanidade.
O carisma e a missão calabriana, contudo, nos convidam a ir além do simples sentimento, da preocupação ou da indignação. Nossa fé nos pede coerência e ação. É claro que não iremos a Caxias do Sul para tentar “resolver” aquela situação específica. Mas o que podemos e devemos fazer é refletir e agir a partir de onde estamos, talvez de forma diferente, talvez de modo mais coletivo e assertivo.
A pergunta que me surge é: a partir da nossa realidade, com os recursos que temos, o que estamos fazendo para superar a violência em nossos contextos? Especialmente dentro de nossas escolas e espaços socioeducativos calabrianos, como podemos agir mais e melhor para colaborar na construção de uma cultura de paz?
Não tenho uma resposta definitiva. Talvez ninguém a tenha por completo. Mas acredito que juntos podemos iniciar um caminho. A questão é ampla e complexa. Não diz respeito apenas aos ambientes educativos, mas depende deles também. E penso, sobretudo, que a resposta precisa ser coletiva, construída não apenas com ações isoladas, mas com processos que gerem mudanças nas mentalidades, na sensibilidade e nas atitudes.
Com frequência, ouvimos respostas apressadas e simplistas: “Essa violência é culpa dos pais, que não educaram em casa!”. Sim, pode haver responsabilidade familiar. Mas não só. A educação é um processo social e cultural, construído com a participação da família, da escola, dos grupos de convivência e da sociedade em geral. Como já nos lembrou o Papa Francisco, citando um antigo provérbio africano: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” A pessoa se forma nas relações e interações sociais, integrando os elementos culturais e ambientais do seu contexto de vida.
Portanto, não se trata de buscar culpados, mas de somar forças para encontrar caminhos de superação e transformação. O horizonte dessa transformação está em resgatar a essência do ser “humano”, como alguém capaz de comunhão, de comunidade. Somos seres de convivência. A relação com o outro é fundamento de nossa constituição humana. A capacidade de cooperação é o que nos permite coexistir e realizar nossa plenitude, mesmo diante da vulnerabilidade, do sofrimento e da dor.
E aqui está um ponto crucial: a capacidade de reconhecer e acolher as próprias dores e as dores do outro. A violência é também o fruto de uma dor não acolhida, de uma ferida não reconhecida nem cuidada. Como diz novamente a sabedoria africana: “A criança que não é abraçada pela sua aldeia, mais tarde irá incendiá-la para sentir o seu calor.”
Quantos incêndios temos visto por aí... quantos abraços foram negados! E a Obra Calabriana é chamada a ser esse abraço, esse acolhimento, esse abrigo, oferecendo espaços e tempos de escuta, partilha e diálogo sobre as dores de cada um. É neste chão que nos tornamos verdadeiros irmãos e irmãs.
Para isso, talvez a boa e velha roda de conversa seja um dos caminhos. A circularidade das cirandas, das brincadeiras de roda, dos momentos de partilha de vida. Na roda, todos se colocam no mesmo nível; todos se enxergam; todos têm o direito de falar e o dever de escutar. Ser ouvido, ser visto, ser considerado é condição para sentir-se amado — é ser abraçado pela aldeia. E só quem se sentiu amado é capaz de amar. Somente quem foi minimamente respeitado e considerado, será capaz de considerar e respeitar o outro.
Sabemos, no entanto, que no “nível de incêndio” em que nos encontramos, até mesmo propor uma roda de conversa é desafiador. Muitos educadores estão cansados de tanto tentar. Mas é justamente a esperança em uma mudança possível que nos move enquanto educadores/as. Não buscamos um mundo perfeito, mas um mundo mais justo e humano. A educação, mesmo sem ser o único instrumento de transformação, tem um papel essencial e insubstituível.
Educar para a paz exige educar para o conhecimento de si e do outro, para as habilidades socioemocionais, para a resolução de conflitos, para a escuta e o diálogo, para a fraternidade e para a sensibilidade.
E junto com isso, um ponto fundamental precisa ser lembrado: o que estamos priorizando em nossos currículos e projetos? Qual tipo de ser humano estamos formando? Para qual projeto de sociedade estamos ensinando? Queremos que nossos acolhidos “vençam” na vida? Sim, mas no sentido ético: que superem a si mesmos, suas limitações e medos, tornando-se protagonistas de uma vida digna e feliz.
Mas não podemos cair no discurso social dominante, onde “vencer” significa superar o outro, ser o mais esperto, o mais competitivo, o mais adaptado ao mercado. O desenvolvimento de habilidades e competências é essencial — sim. Mas precisa estar alicerçado em valores como o bem comum, a justiça, a solidariedade, a convivência fraterna.
Como dizia Rubem Alves: “Sem o ensino das sensibilidades, todas as habilidades são tolas.” Não se trata de desprezar outras áreas do saber, mas de recordar que a base da educação é o ser humano em sua totalidade. Não faz sentido termos diplomas e títulos se não cumprimentamos o porteiro.
Nesse mesmo espírito, Maria Montessori também nos alertava: “As pessoas educam para a competição, e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperar e sermos solidários, estaremos educando para a paz.”
Diante de tudo isso, fica o convite à reflexão: Como estão nossas ‘aldeias’ educativas calabrianas? Estamos, de fato, oferecendo espaços de acolhida? Estamos educando para a cooperação mais do que para a competição?
Às vezes, essa realidade parece nos desanimar. Parece ser maior que nós — e é mesmo. Mas é justamente porque sonhamos com uma humanidade mais fraterna que vale a pena lutar. Nossa missão é também profissão e trabalho, sim, e por isso é justo lutar por mais direitos e valorização. Mas nunca esqueçamos da causa que nos move, do sonho que devemos cultivar: o sonho de um mundo mais irmão.
Disse tantas vezes São João Calábria: “Coragem! Vamos em frente com confiança!”
Ele também dizia que o educador é como um irmão mais velho, e o educando, um irmão menor que deve ser guiado e acolhido com amor. É isso que desejamos: crescer juntos neste desafio pessoal e coletivo.
Então, como calabrianos e calabrianas, perguntemo-nos: na minha missão, na função que desempenho, como posso colaborar com a formação de crianças, adolescentes e jovens mais fraternos, mais respeitosos, mais sensíveis consigo mesmos e com os outros?
E se aquilo que você pode fazer parecer pouco, não tenha medo de fazê-lo. Precisamos de cada “pouquinho”. Porque o teu pouco somado ao pouco de outro pode se transformar em milhões. Cada passo conta numa maratona.
Coragem! Vamos juntos! Não estamos sozinhos neste caminho!
Gustavo GobboCoordenação Nacional da PastoralAbril de 2025
----
Acompanhe as Notícias da Delegação através do canal no WhatsApp!
Mais em Artigos
- “Obtivemos misericórdia, tornemo-nos misericordiosos”: o testemunho do Papa Francisco e o chamado a uma Igreja que acolhe e cuida“Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.” (Mt 5,7)
24.04.2025 | 5 minutos de leitura
- 26 Anos da Canonização de São João Calábria: Um Legado de Fé, Caridade e Esperança para Toda a Família CalabrianaQue São João Calábria interceda por todos nós e nos ensine, com sua vida e com suas palavras, a buscar em primeiro lugar o Reino de Deus, a confia...
18.04.2025 | 6 minutos de leitura
- Aos padres – Quinta-Feira SantaVivam o sacerdócio com amor e, a cada dia, renovem o “sim” dado no dia da ordenação... Essa renovação acontece na oração diária, onde se r...
17.04.2025 | 5 minutos de leitura
- Tornar-se Cireneu: Uma Jornada de Compaixão na Semana Santa com o Papa FranciscoNa homilia do Domingo de Ramos, o Papa Francisco nos convida a viver a Semana Santa como verdadeiros Cireneus: acolhendo a cruz do próximo com compai...
14.04.2025 | 8 minutos de leitura
- Cinco formas de viver a Semana Santa à luz da Espiritualidade CalabrianaViva esta Semana Santa com confiança na Providência, abrindo o coração para ser transformado pelo amor de Cristo que passa da cruz à ressurreiç...
11.04.2025 | 4 minutos de leitura
- Viver o Jubileu da Esperança na Quaresma: Um Caminho de Conversão e FidelidadeHoje, somos chamados a seguir o exemplo profético de São João Calábria, sendo no mundo sinais vivos da esperança que brota da confiança em Deus ...
06.04.2025 | 5 minutos de leitura
- Retornemos ao Evangelho sem Interpretações Arbitrárias: Um Convite de São João CalábriaRetornar ao Evangelho em sua pureza é abraçar a vida com fé autêntica, confiança na Providência e amor concreto que transforma o mundo.
28.03.2025 | 4 minutos de leitura
- Evangelhos Vivos: O Chamado de São João CalábriaO ensinamento de São João Calábria permanece atual e necessário. Em um mundo marcado pela indiferença e pelo relativismo, a vivência autêntica ...
20.03.2025 | 3 minutos de leitura
- São José: Pai Amado, Modelo de Fé e TernuraSão José, modelo de fé, ternura e obediência, nos ensina a confiar em Deus, acolher nossa missão com coragem e viver a santidade no serviço humi...
19.03.2025 | 3 minutos de leitura
- Campanha da Fraternidade 2025 e a Espiritualidade Calabriana: Um Chamado à Confiança em Deus e ao Cuidado com a Casa ComumA Campanha da Fraternidade 2025 nos convida, à luz da espiritualidade calabriana, a confiar na Providência, viver a fraternidade e cuidar da casa co...
19.02.2025 | 5 minutos de leitura