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    Rajadas de vento 33 - Mutilar o Coração¹

    A Obra não precisa de próteses para silenciar sua dor, mas da escuta daquela dor, não de robotização, mas de humanização.

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    19.11.2022 12:00:35 | 5 minutos de leitura

    Rajadas de vento 33 - Mutilar o Coração¹

    Por Ir. Carlo Toninello PSDP² 

    Há pessoas, mas talvez é uma experiência que diz respeito a todos nós, de certa forma, que por medo de voltar a ter uma experiência de sofrimento conexa a um relacionamento, decidem privar-se da ternura e do carinho de que tanto necessitam. Eles decidem evitar qualquer risco de sofrer novamente e, assim, anestesiam uma grande parte de seu coração, deixando-o insensível. Essas pessoas implementam toda uma série de recursos destinados a evitar qualquer possibilidade de reviver uma experiência que os provou duramente. Ao fazê-lo, porém, essas pessoas vivem constantemente sob a ameaça do medo, prisioneiras e limitadas em sua liberdade. Colocam uma mordaça no coração, uma focinheira ou até cortam o pedaço mais doloroso. É um grito que não querem ouvir, uma voz que querem abafar, um sentimento que querem erradicar.

    Este tipo de experiência pessoal, que poucos ou muitos de nós podem ter feito, pode servir de base para a reflexão sobre alguns modos de agir na Obra e da Obra como instituição.

    Em primeiro lugar, gostaria de traçar um paralelo entre a experiência delineada acima e o que cada um de nós pode vivenciar dentro da Obra. Não é incomum e talvez até inevitável que viver na Obra, assim como viver em família, seja uma ocasião de sofrimento. Podem acontecer fatos, desentendimentos, incompreensões que levam a situações de dor nas pessoas, sentimentos de abandono e desconfiança. Não acho que seja raro. Se trata de instituições humanas onde atuam seres humanos limitados e frágeis, que muitas vezes acabam ferindo uns aos outros. Fatos acontecem, escolhas são feitas, coisas são ditas (ou não ditas) que causam dor, sofrimento, feridas, humilhações, sente-se traído, abandonado. As pessoas que vivem uma tal experiência podem reagir da maneira acima delineada: evitando qualquer outra ocasião possível de dor, de desentendimento, fugindo das relações, evitando contatos que possam renovar essa dor, silenciando suas próprias necessidades de ternura e atenção, sufocando os gritos que surgem da alma, isolando-se em lugares e ocupações que dificultam encontros e confrontação. Essas pessoas silenciam o coração e, em alguns casos, mutilam a parte dolorosa, a parte que pediria para ser acolhida e ouvida para não sofrer novamente.

    Depois há um paralelo que poderíamos traçar com a dimensão institucional.  Também a Obra poderia, de fato, sofrer. Também a própria Obra se arrisca por vezes a tentar resolver certas situações de sofrimento e cansaço mutilando o seu próprio coração, sufocando o grito que lhe brota, amordaçando os pedidos que a apertam, ignorando necessidades e apelos que podem vir de dentro ou de fora dela. Uma das formas que poderia ser usada para mutilar o coração da Obra e assim extinguir a fonte de dor e fadiga é substituir a parte mutilada por próteses institucionais e burocráticas úteis para a ilusão de lidar com a dor e despojá-la de todo sentido, ou seja, uma forma de manipular a dor. Há a ilusão de que as próteses tiram a dor, escondem, fazem esquecer, extinguem sua força. Mas a multiplicação de próteses não só não resolve o problema da dor, como acaba por transformar a própria identidade da Obra. Uma “Obra protética” (portadora de prótese) parece cada vez mais um robô sem alma com um espírito digitalizado e pré-programado, um software desprovido de criatividade e sensibilidade. Nesse caso, o objetivo, não tão secreto, das próteses é anestesiar a dor e o cansaço. Mas assim como um coração anestesiado ou mutilado fica sem energia e deixa de gerar vida, assim também a Obra anestesiada ou mutilada em algumas de suas dimensões acaba sendo um invólucro eficiente, mas sobretudo vazia.

    A Obra não precisa de próteses para silenciar sua dor, mas da escuta daquela dor, não de robotização, mas de humanização. As próteses nos levam a viver o carisma como um hábito ao qual nos apegamos como a uma rocha, quando, ao contrário, deveríamos nos desprender e mergulhar no mar, experimentando também nossas dores. Precisamos de uma Obra que nos ajude a estar vivos e vibrantes, que anime nosso “furor de viver” e apoie nosso desejo de ser feliz e nossa responsabilidade de fazer os outros felizes. A sinodalidade não é uma ajuda técnica que produz próteses, mas um projeto de escuta, um processo de discernimento, um caminho a ser feito de mãos dadas, um olhar no olhar e não interface com interface.
    _________________
    ¹ O número 33 faz referência aos textos produzidos sob título rajadas de vento (Colpi di vento) 
    ² Religioso Pobre Servo, de nacionalidade italiana com a formação em psicologia clínica, pela Universidade dos Estudos de Pádua, Itália. Foi Conselheiro Geral da Congregação Pobres Servos da Divina Providencia por 12 anos (2002-2013). Atualmente é missionário em Angola.

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