Liturgia: introdução...
“Ninguém na Igreja é dono da liturgia. Eu não sou dono, sou servidor. [...] Portanto, eu não posso manipular a liturgia ao meu bel prazer... segundo o que eu chamo de ‘criatividade selvagem e fantasia’” nos recorda Dom Armando Bucciol. Esta série de artigos sobre a temática será desenvolvida pelo Irmão Rafael Pedro Susrina, psdp.
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17.09.2021 07:44:15 | 8 minutos de leitura

Iniciar um diálogo sobre Liturgia, no Brasil e na Congregação, é buscar falar sobre um assunto tabu. Mesmo, assim, sabendo desta complexidade sentida nas rodas de conversa, buscar-se-á construir um caminho inicial de reflexão sobre o que de fato é Liturgia, e não aquilo que “eu” penso que seja Liturgia; ou muito menos ficar preso a um estudo visto na faculdade, ou em alguns cursos. Já que por ocasião do tempo em que cada pessoa estudou sobre Liturgia, pode ter acontecido, que a mesma, tenha sido apresentada com outras perspectivas, sem o uso dos Documentos da Igreja e as orientações dos Santos Padres, dentro de uma noção “progressista” e não conduzida pela ação do Espírito Santo. Pois, assim, como disse Dom Armando Bucciol, ex-presidente da Comissão Episcopal Pastoral de Liturgia da CNBB, na 56ª Assembleia Geral: “Ninguém na Igreja é dono da liturgia. Eu não sou dono, sou servidor. Também o Papa é servidor da Igreja, o primeiro. E, portanto, eu não posso manipular a liturgia ao meu bel prazer... segundo o que eu chamo de ‘criatividade selvagem e fantasia’”. Somos convidados a abrir nossa mente e coração, para que seja Deus a agir e mostrar o caminho da Liturgia.
O que é Liturgia?
Liturgia significa “serviço da parte do povo e em favor do povo” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1069). Liturgia é serviço, atividade, missão; realizada pelo povo, pela comunidade. Não é uma ação isolada, ou mesmo individualista de um grupo específico, mas uma ação do Povo de Deus, da unidade da Igreja; e em benefício do povo, pois a obra de redenção se faz presente nessa ação.
Para que Liturgia?
“Esta obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus, da qual foram prelúdio as maravilhas divinas operadas no povo do Antigo Testamento, completou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal de sua bem-aventurada paixão, ressurreição dos mortos e gloriosa ascensão. Por este mistério, Cristo ‘morrendo, destruiu nossa morte, e ressuscitado, recuperou nossa vida’. Pois do lado de Cristo adormecido na cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja.” (Sacrosanctum Concilium, n. 5). Razão esta pela qual, na Liturgia, a Igreja celebra a obra da redenção, realizada por Cristo. “Com efeito, a liturgia, pela qual, principalmente no divino sacrifício da Eucaristia, ‘se exerce a obra de nossa redenção’, contribui do modo mais excelente para que os fiéis, em sua vida, exprimam e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a genuína natureza da verdadeira Igreja.” (SC, n. 2)
Falar de Liturgia, celebrar a Santa Missa não nos pode fazer esquecer o verdadeiro sentido de estarmos vivendo-a. No momento em que perco o significado da Liturgia, sua origem, o por que a celebramos e a forma que a fazemos, abre-se um campo vasto de possibilidades para não se viver mais o mistério da salvação; de realizar, fazer “coisas” que desvirtuam, banalizam e até negam o sacrifício de Cristo.
Quem é o sujeito da Liturgia?Liturgia, serviço da parte do povo, não tem no povo o seu sujeito, mas em Deus. Papa emérito Bento XVI diz que a Liturgia “é o ato no qual cremos que Deus entra na nossa realidade e nós o podemos encontrar e tocar. É o ato no qual entramos em contato com Deus: Ele vem a nós, e nós somos iluminados por Ele. Por isso, quando nas reflexões sobre a liturgia focalizamos apenas o modo como a tornar atraente, interessante e bonita, corremos o risco de esquecer o essencial: a liturgia celebra-se para Deus, e não para nós mesmos; é obra sua; Ele é o sujeito; e nós devemos abrir-nos a Ele e deixar-nos guiar por Ele e pelo seu Corpo, que é a Igreja.”¹
Papa Francisco, afirma que deve-se “reconhecer a realidade da sagrada liturgia, tesouro vivo que não pode ser reduzido a gostos, receitas nem correntes, mas deve ser ouvido com docilidade e promovido com amor, porque é alimento insubstituível para o crescimento orgânico do Povo de Deus. A liturgia não é ‘autoajuda’ mas epifania da comunhão eclesial. Por conseguinte, nas orações e nos gestos ressoa o “nós” e não o “eu”; a comunidade real, não o sujeito ideal. Quando se desejam nostalgicamente tendências passadas ou se querem impor outras novas, corre-se o risco de antepor a parte ao todo, o eu ao Povo de Deus, o abstrato ao concreto, a ideologia à comunhão e, no fundo, o mundano ao espiritual.”²
A Liturgia, mesmo sendo este serviço realizado pelo povo, não pode deixar-se confundir e esquecer quem é o sujeito desta ação; quem deve estar em destaque, a conduzir o culto, a oração. Não sermos nós, aqueles que aparecem, mandam e desmandam, segundo o nosso bel prazer. Devemos recordar a origem, ou seja, que a Liturgia é obra de Deus e nós meros instrumentos “da multiforme graça de Deus” (1 Pd 4,10). Tendo em mente e coração este sentimento, não sobraria espaço para que acontecesse desvios litúrgicos, liturgias selvagens e o exercício de criatividades egoístas. Onde “tantas pessoas, tantas comunidades, afadigam-se tentando recriar continuamente as celebrações litúrgicas ao gosto dos fiéis e mesmo daqueles que não têm participação na vida eclesial e ‘visitam a liturgia’ só ocasionalmente”³.
Quem celebra a Liturgia?
O Catecismo apresenta que a Liturgia é ‘ação’ do ‘Cristo todo’. Na qual, os celebrantes da Liturgia celeste, narrada no livro do Apocalipse de São João, são: o Senhor Deus; o Cordeiro: Cristo crucificado e ressuscitado; o rio da água viva: o Espírito Santo. Os “recapitulados” em Cristo: as potências celestes, a criação inteira, os servidores da antiga e nova aliança, o novo povo de Deus, os mártires, a Santa Mãe de Deus e, por fim, uma multidão imensa. Os celebrantes da Liturgia sacramental são: toda a comunidade dos batizados, ou seja, os membros da Igreja. (cf. CIC, n. 1136-1141). Percebe-se, assim, que a celebração da Liturgia une os fiéis que estão no céu com os da terra, mais uma vez, demonstrando que não é a individualidade que conduz, não é o “Eu” que determina, mas a Comunhão, fruto da presença de Deus em nós. Recordando que “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é ‘sacramento de unidade’, isto é, Povo santo reunido e ordenado sob a direção dos Bispos. Por isso, tais ações pertencem a todo o Corpo da Igreja, manifestam-no, atingindo, porém, cada um dos membros de modo diverso, segundo a variedade de estados, funções e participação atual.” (SC, n. 26).
Na Liturgia da Igreja, Cristo significa e realiza principalmente seu mistério pascal (cf. CIC, n. 1085); confia aos Apóstolos, por doação do Espírito Santo, o poder de santificação, tornando-os sinais sacramentais de Cristo, passados para seus sucessores (cf. CIC, n. 1087). “Cristo está sempre presente em sua Igreja, sobretudo nas ações litúrgicas.” (SC, n. 7)
Resumindo, podemos dizer que:Liturgia é fonte de oração; por meio da participação da oração de Cristo, direcionada ao Pai no Espírito Santo. Liturgia é fonte de vida; a Eucaristia é “fonte de toda a vida cristã” (Lumen Gentium, n. 11).Liturgia é fonte donde emana toda a força da Igreja (cf. SC, n. 10). Momento privilegiado para a catequese do povo de Deus.Viver a Liturgia é poder reconhecer que “somos simples servos, fizemos apenas o que devíamos fazer” (Lc 17,10). A partir do que foi exposto, o que entendemos de Liturgia?
São João Calábria referir-se-á, na Solenidade de Páscoa, sobre a grande importância da Liturgia: “A isso nos convida a Igreja com as comoventes expressões da sagrada liturgia, exortando-nos a depor o homem velho e a revestir-nos do homem novo. ‘Se realmente ressuscitastes com Cristo, procurem as coisas do alto, nada mais desejando a não ser as coisas do céu: ‘quae sursum sunt, quaerite, quae sursum sunt sapite.’” 4
Irmão Rafael Pedro Susrina, PSDP
____________1 BENTO XVI, Papa. Audiência Geral, 3 out. de 2012. Disponível em: http:// www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20121003.html. Acesso em: 03 dez. 2019.2 FRANCISCO, Papa. Discurso aos participantes na Assembleia da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, 14 de fev. de 2019. Disponível em: http:// http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2019/february/documents/papa-francesco_20190214_cong-culto-divino.html. Acesso em: 06 dez. 2019.3 ASSUNÇÃO, Rudi Albino de. O sacrifício da palavra: a liturgia da Missa segundo Bento XVI. Campinas: CEDET, 2016. p. 46.4 CALÁBRIA, Pe. João. Carta aos Religiosos: Carta LVI – Sábado Santo, 25 de mar. de 1948.
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