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Entrevista com Papa Francisco

Francisco: “A guerra é a grande inimiga do diálogo universal”

Igreja

20.10.2023 17:07:34 | 22 minutos de leitura

Entrevista com Papa Francisco

POR BERNARDA LLORENTE

Estes são dias agitados no Vaticano, como quase todos os últimos dez anos de um Papado que despertou estruturas adormecidas para colocá-las em movimento no ritmo que estes tempos exigem. As suas respostas e iniciativas contemplam não só a complexidade de um mundo em movimento com ou sem bússola, mas também as ações necessárias para superar uma crise da civilização que nos permite melhorar o presente e construir outro futuro.

No Sínodo que se realiza nestes dias – espaço de escuta e reflexão ao interior da Igreja – o Papa Francisco apela “ao olhar de Jesus que abençoa e acolhe para não cair em algumas tentações: ser uma Igreja rígida, que se blinda contra o mundo e olha para o passado; a de ser uma Igreja morna, que se entrega às modas do mundo; o de ser uma Igreja cansada, fechada em si mesma”.
Esta tarde de final de setembro, a vida me dá a oportunidade de entrevistar novamente o mais transcendente líder religioso, social e ético do Planeta. Santa Marta é o cenário de uma conversa em que ele analisa alertas, saídas, reflexões, a partir do seu olhar universal, acolhedor, transformador.

Na metade do encontro, Francisco salienta: “Acho que o diálogo não pode ser apenas nacionalista, é universal, principalmente hoje com todas as facilidades que existem para nos comunicarmos. É por isso que falo de diálogo universal, de harmonia universal, de encontro universal. E claro, o inimigo disto é a guerra. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até agora, tem havido guerras por toda parte. “Foi o que me levou a dizer que estamos vivendo uma guerra mundial em pedacinhos”.

As suas palavras deveriam interpelar mais fortemente ainda a consciência planetária durante estas horas desde a manhã de sábado, 7 de outubro, quando a violência entre Israel e a Palestina aumentou de forma inusitada.

No domingo, dia 8, no final da oração do Angelus, falou da sua dor pelo agravamento da guerra que assola a Terra Santa: “Expresso a minha proximidade às famílias das vítimas, rezo por elas e por todos aqueles que vivem horas de terror e angústia. Que os ataques e as armas se detenham, por favor! e se entenda que o terrorismo e a guerra não levam a nenhuma solução, levam apenas à morte e ao sofrimento de tantas pessoas inocentes".

Apenas 72 horas depois, na audiência semanal do dia 11, ele redobrou o seu apelo pela paz. “O terrorismo e os extremismos não contribuem para alcançar uma solução ao conflito entre israelenses e palestinos, mas, em vez disso, alimentam o ódio, a violência e a vingança, e fazem sofrer ambos os povos”.

E no Angelus deste domingo, 15, o Pontífice reiterou o seu apelo à paz e implorou o respeito pelo direito humanitário “especialmente em Gaza, onde é urgente e necessário garantir cordões humanitários e ajudar toda a população”.

“As guerras são sempre uma derrota”, insistiu o Papa peregrino, o qual naquela tarde de finais de setembro em Santa Marta, aos 86 anos, iluminou-se de entusiasmo no rosto contando quais os destinos previstos ao redor do mundo em sua agenda como pastor incansável para caminhar, mais uma vez, juntos por um futuro de esperança.

- Francisco, ainda lhe restam viagens importantes?

Bem, sim, a Argentina (risos).

- Claro.

Eu gostaria de ir…

Falando dos mais distantes, ainda me resta Papua Nova Guiné. Mas alguém me dizia que como vou para a Argentina, devo fazer uma escala na cidade de Río Gallegos, depois no Pólo Sul, desembarcar em Melbourne e visitar a Nova Zelândia e a Austrália. Seria um pouco longo.

- Como planeja suas viagens? Como escolhe seus destinos?

- Chegam muitos convites, há toda uma lista de viagens possíveis e algumas são impostas por conta própria, por exemplo, a da Mongólia. Outras são mais planejadas, dentro da Europa, como a viagem à Hungria. Depende de cada caso. Sempre há um convite e depois está a intuição do momento. Não é algo automático, cada decisão é original, única.

- Suas visitas costumam mostrar propósitos, grandes temas para destacar e muita proximidade com os povos, coerente com sua ideia de que as transformações exigem o compromisso dos mais poderosos, mas também das individualidades. Quando vemos forças de extrema direita que se expandem, certa frustração ou decepção com a política ou um voto que as expressa, o senhor acha que essas crises são momentâneas ou duradouras? O que pode ser feito para revertê-las?

- Gosto da palavra crise porque tem movimento interno. Mas de uma crise só é possível sair para cima, não se sai enxugando. É possível sair para cima e não se pode sair sozinho. Quem quer sair sozinho faz desse caminho de saída um labirinto, que sempre dá voltas e mais voltas. A crise é labiríntica. Além disso, as crises geram crescimento: quando uma pessoa, uma família, um país ou uma civilização está em crise. Porque se a resolveram bem, houve crescimento.

Minha preocupação é quando os problemas ficam trancados para dentro e não conseguem sair. Uma das coisas que temos de ensinar aos jovens é como lidar com as crises. Como resolver as crises. Porque isso dá maturidade. Todos já fomos jovens sem experiência e às vezes os meninos e meninas se apegam ao milagre, ao Messias, a que as coisas se resolvem de forma messiânica. O Messias foi um só e salvou todos nós. O resto são todos palhaços messiânicos. Ninguém pode prometer a resolução de conflitos, a não ser através de crises ascendentes. E não só isso. Vamos pensar em qualquer tipo de crise política, em um país que não sabe o que fazer, na Europa são várias... o que se faz? Estamos procurando um messias que venha e nos salve de fora? Não. Vamos procurar onde está o conflito, agarrá-lo e resolvê-lo. Gerenciar os conflitos é uma sabedoria. Mas sem conflitos não podemos ir para frente.

- O que está faltando à humanidade e o que está sobrando?

- A humanidade carece de protagonistas de humanidade, que torne visível seu protagonismo humano. Às vezes noto que falta essa capacidade de gerir crises e de fazer emergir a própria cultura. Não tenhamos medo de que os verdadeiros valores de um país sejam revelados. As crises são como vozes que nos dizem onde devemos proceder. Por outro lado, os problemas que às vezes ficam um pouco encobertos ou escondidos são como o Flautista de Hamelin, que tocam a flauta, você acredita que tudo é flauta, você vai lá e todo o mundo se afoga. Tenho muito medo dos Flautistas de Hamelin porque eles são encantadores. Se fossem de cobras, os deixaria (risos), mas são encantadoras de gente... e as acabam afogando. Gente que acredita que pode sair da crise dançando ao som da flauta, com redentores feitos de um dia para o outro. Não. A crise deve ser assumida e superada, mas sempre para cima.

- E está nos sobrando individualismo? Indiferença?

- Tenho mais medo da indiferença, porque é uma espécie de apatia cultural. Que aconteça isso, que aconteça aquilo, enquanto o flautista continua tocando e os povos se afogando. As grandes ditaduras nascem de uma flauta, de uma ilusão, de um encanto do momento. E depois dizemos “que pena, todos acabamos nos afogamos”. Repito novamente, gosto desta imagem do Flautistade Hamelin. Claro que ainda tem aquele afogamento de ratos (risos).

- Qual é o risco dessas identidades únicas ou pensamentos únicos?

- Que isso anula a riqueza humana. O pensamento único bane a riqueza humana. E a riqueza humana deve levar em conta três realidades, três linguagens: a da cabeça, a do coração e a das mãos. De tal forma que se pense no que se sente e no que se faz, sinta o que se pensa e se faz, e faça o que pensar e sentir. Essa é a harmonia humana. Se faltar alguma dessas três linguagens, há um desequilíbrio que leva a um sentimento único, a um pragmatismo único ou a um pensamento único. São traições à humanidade.

- A austeridade é uma prática habitual em sua vida. É uma convicção e também uma mensagem?

- Bem, a austeridade em si não existe. Existem homens e mulheres austeros. E o que é isso? Alguém que vive do seu trabalho, que tem uma cultura e sabe expressá-la, e que sabe caminhar para frente contagiando austeridade. Na cultura do fácil, do suborno e de tantos escapismos, é muito difícil falar em austeridade. A austeridade é ensinada com trabalho. Os austeros não vivem sem trabalhar. O que unge uma pessoa com austeridade é o seu trabalho, o seu compromisso, o fato de ganhar o pão com o suor do seu rosto, seja um suor material ou intelectual. É importante conceber o trabalho como algo inerente à pessoa humana. A preguiça é uma doença social. Existem até os ricos preguiçosos, aqueles que vivem à custa dos outros sem pensar no bem-estar comum. A preguiça e a vadiagem são muito traiçoeiras porque alimentam toda essa ânsia de tirar vantagem para mim, à custa dos outros. Por isso, quem trabalha, onde quer que trabalhe, assume dignidade.

Um problema é a falta de dignidade quando se impõe a cultura do desperdício, da diversão, da exploração e do não trabalho. Aí a pessoa perde a dignidade. Uma pessoa é digna se ganha o pão e cuida dos outros.

- O senhor estende a cultura do trabalho para fronteiras mais amplas. O que seria o trabalho hoje em um mundo desigual e sem possibilidades para muitos?

- Volto à mesma coisa, o que te unge digno é o trabalho. Agora, a maior traição para este caminho de dignidade é a exploração. Não da terra para produzir mais, mas da exploração do trabalhador. Explorar as pessoas é um dos pecados mais graves. E explorá-las para seu próprio benefício. Tenho muita informação sobre a exploração trabalhista no mundo. E isso é muito duro. O trabalho dá dignidade e, portanto, o trabalhador tem direitos concretos. Quem o contrata para trabalhar tem que prestar serviços sociais, que fazem parte do direito. O trabalho é com direitos ou é escravo.

- Estão os que pensam que as legislações trabalhistas são o principal obstáculo para a geração de emprego e o aumento da produtividade. E há líderes políticos, em diferentes países, que baseiam suas promessas de campanha no fim dos direitos conquistados.

- Quando um trabalhador não tem direitos ou é contratado por pouco tempo para substituí-los e não pagar as contribuições, ele se torna escravo e o outro se torna algoz.

Algoz não é apenas aquele que mata uma pessoa, também é quem a explora. Temos que estar cientes disso. Às vezes, quando me ouvem dizer as coisas que escrevi nas encíclicas sociais, dizem que o Papa é comunista. Não é assim. O Papa pega o Evangelho e diz o que o Evangelho diz.  Já no Antigo Testamento, o direito hebreu pedia cuidar da viúva, do órfão e do estrangeiro. Se uma sociedade cumpre essas três coisas, se da bem. Porque se responsabiliza pelas situações extremas da sociedade. E se você assumir o controle das situações extremas, também fará o mesmo com as outras.

Quando você começa a contratar trabalhadores sem carteira assinada para evitar o pagamento de contribuições e negociar o futuro dessas pessoas com a escravidão, é aí que o trabalho começa a adoecer. E em vez de dar dignidade, o trabalho confere escravidão. Temos que estar muito atentos a isso. E quero deixar bem claro que não sou comunista como dizem alguns (risos). O Papa segue o Evangelho.

- Como o senhor observa esse desenvolvimento tecnológico acelerado, incluindo a Inteligência Artificial, e como o senhor acha que ele pode ser gerenciado de um ponto de vista mais humano?

- Gosto do adjetivo “acelerado”. Quando alguma coisa está acelerada me causa preocupação, porque não dá tempo de se estabilizar. Quando olhamos desde a revolução industrial até os anos 50 do século passado, vemos um desenvolvimento não acelerado onde existiram mecanismos de controle e ajuda. Quando as mudanças aparecem aceleradas, os mecanismos de assimilação não têm tempo suficiente, e acabamos sendo escravos. E é tão perigoso ser escravo de uma pessoa ou de um trabalho, como ser escravo de uma cultura.

O que da a pauta de um progresso cultural, incluindo a inteligência artificial, é a capacidade de homens e mulheres de geri-lo, assimilá-lo e controlá-lo. Ou seja, o homem e a mulher são senhores da Criação e não devemos desistir disso. O senhorio da pessoa sobre qualquer coisa. As mudanças científicas sérias são progresso. Devemos estar abertos para isso.

- Francisco, entre as guerras e conflitos o senhor apela a um novo conceito: o de segurança integral. Em que consiste esta ideia global?

Não se pode alcançar uma segurança parcial, para um país, se não for uma segurança integral, para todos. Não se pode falar de segurança social se não existe uma segurança universal ou que esteja em vias de se tornar universal. Acredito que o diálogo não pode ser apenas nacionalista, é universal, especialmente hoje com todas as facilidades que existem para nos comunicarmos. É por isso que falo de diálogo universal, de harmonia universal, de encontro universal. E é claro, o inimigo disto é a guerra. Desde que a Segunda Guerra Mundial acabou até agora, tem havido guerras por todos os lugares. Foi o que me levou a dizer que estamos vivendo uma guerra mundial em pedacinhos. Agora percebemos por que surgiu esta guerra mundial.

- Quais são as situações que propiciam ou favorecem as guerras?

A exploração é uma das origens da guerra. A outra origem é de tipo geopolítico de controle territorial. Há guerras que parecem infinitas, que nascem por razões culturais, mas na realidade são pelo domínio de território. Myanmar, por exemplo, é uma guerra que já dura há anos e anos, onde um povo muçulmano, os Rohingyas, sofre perseguição durante anos e anos por um tipo de domínio elitista, como de uma humanidade superior.

Também acredito que as guerras são promovidas pelas ditaduras. Existem ditaduras declaradas, encontramos muitas no mundo, e outras que não são declaradas, mas têm o poder de uma ditadura.

- O senhor acredita que unir as nossas consciências, para além das diferenças que possamos ter tanto a nível religioso quanto político, é um começo na construção da paz e do bem comum?

- Sim, absolutamente sim, mas com uma condição: que você tenha consciência da sua própria identidade. Não se pode dialogar com o outro se não temos consciência de onde falamos. Quando duas identidades conscientes se encontram, podem dialogar e dar passos em direção ao acordo, ao progresso, a caminhar juntos. Mas se não temos consciência da própria identidade, assumimos o que achamos que é, e traímos a cultura do nosso povo, do país, da própria família. A consciência da identidade é muito importante para o diálogo. Se eu, como católico, tiver que conversar com alguém de outra religião, tenho que ter verdadeira consciência de que sou católico e que o outro tem todo o direito à sua religião. Mas se não tenho consciência da minha própria identidade não vou dialogar e vou rir de tudo, vender tudo, disfarçar tudo. Não teria uma consistência verdadeira.

- O Sínodo de 2023 realiza-se em um contexto no qual o senhor definiu esta época não pelas suas mudanças, mas, fundamentalmente, como uma mudança de época. Como a Igreja se adapta a esta realidade? Qual a Igreja necessária nestes tempos?

- Desde o início do Concílio Vaticano II, João XXIII teve uma percepção muito clara: a Igreja tinha que mudar. Paulo VI concordou e continuou, assim como os Papas que os sucederam. Não se trata apenas de mudar a moda, trata-se de uma mudança de crescimento e em favor da dignidade das pessoas. E aí é que está a progressão teológica, da teologia moral e de todas as ciências eclesiásticas, incluindo a interpretação das Escrituras, que têm progredido de acordo com o sentir da Igreja. Sempre em harmonia. Os rompimentos não são bons. Ou progredimos pelo desenvolvimento ou terminamos mal. Os rompimentos deixam você fora da força vital do desenvolvimento. Gosto de usar aquela imagem da árvore e suas raízes. A raiz recebe toda a umidade da terra e a puxa para cima através do tronco. Quando você se separa disso, você acaba seco e sem tradição. Tradição no bom sentido da palavra. Todos nós temos uma tradição, todos temos uma família, todos nascemos com a cultura de um país, uma cultura política. Todos nós temos uma tradição da qual devemos cuidar.

- O senhor propõe uma complementaridade entre a tradição e o progresso?

- O progresso é necessário e a Igreja deve inserir estas novidades com uma reflexão muito séria do ponto de vista humano. “Nada do que é humano me é estranho”, diz o pensador grego Publio Terencio Africano. A Igreja toma o humano em suas próprias mãos. Deus se tornou homem, ele não se tornou uma teoria filosófica. A humanidade é algo consagrado por Deus. Ou seja, tudo o que é humano tem que ser assumido e o progresso tem que ser humano, em harmonia com a humanidade.

Na década de 1960, os holandeses inventaram a palavra “rapidação”, que era muito mais do que aceleração. Pois bem, nesta rapidação dos conhecimentos científicos a Igreja tem que estar muito atenta e com os seus pensadores em diálogo. E sublinho isto: devemos dialogar com todo o progresso científico. A Igreja deve dialogar com todos, mas a partir da sua identidade, não a partir de uma identidade emprestada.

- Como se resolve a tensão entre mudar e não perder parte da sua essência?

- A Igreja, através do diálogo e da consideração dos novos desafios, tem mudado em muitas coisas. Inclusive em questões culturais. Há um teólogo do século IV que dizia que as mudanças na Igreja devem ter três condições para serem verdadeiras: que sejam consolidadas, que cresçam e que sejam sublimadas ao longo dos anos. É uma definição de Vicente de Lerins, muito inspiradora. A Igreja tem que mudar, pensamos em como mudou desde o Concílio até agora e como tem que continuar mudando na modalidade, na forma de propor uma verdade que não muda. Ou seja, a revelação de Jesus Cristo não muda, o dogma da Igreja não muda, mas cresce, desenvolve-se e se sublima como a seiva de uma árvore. Quem não está neste caminho é aquele que dá um passo atrás e se fecha em si mesmo. As mudanças na Igreja ocorrem neste fluxo de identidade da Igreja. E tem que ir mudando à medida que os desafios vão se apresentando. Daí parte que o núcleo da sua mudança seja essencialmente pastoral, sem negar o essencial da Igreja.

- É difícil ser o representante de Deus nesta Terra e neste momento?

Vou fazer uma heresia. Somos todos representantes de Deus. Todos os crentes temos que dar testemunho daquilo em que acreditamos e, nesse sentido, todos somos representantes de Deus. É verdade que o Papa é um representante privilegiado de Deus (risos), e devo dar testemunho de uma coerência interior, da verdade da Igreja, e da pastoralidade da Igreja, isto é, da Igreja que sempre vai com as portas abertas para os outros.

- Francisco, como é o seu relacionamento com Deus?

- Pergunte a ele (olha para cima e sorri). Acho que é uma imagem, mas há muita verdade: conservo muito da minha piedade quando criança. Minha avó me ensinou a rezar e ainda guardo muito daquela piedade simples, de rezar, de pedir e, como dizemos na Argentina, daquela piedade de carvoeiro. Quando oro, não sou complicado. Alguns podem até dizer que tenho uma espiritualidade antiquada. Pode ser. Nesse sentido, existe um fio condutor desde a infância até agora. A consciência religiosa cresceu muito, é outra coisa, amadureceu, mas a forma de me expressar com Deus é sempre simples. Não consigo ser complicado. Às vezes eu digo (olha para cima) “resolva esse assunto porque eu não posso”. E peço à Virgem, aos santos, que me ajudem. E quando uma decisão tem que ser tomada, o pedido vem sempre antes … a luz que vem de cima, né?

Mas o Senhor é um bom amigo, ele me trata bem. Ele cuida muito de mim, como cuida de todos nós. Temos que descobrir como ele cuida de nós, ele cuida de cada um de nós com o nosso estilo. Isso é muito lindo.

- E às vezes ficamos irritados com Deus?

Não, fico com raiva dos outros. Algumas vezes reclamo dele, mas sei que ele está sempre me esperando. Quando faço alguma coisa mal ou quando fico bravo injustamente com alguém. Mas ele nunca me repreende. No diálogo que eu tenho com o Senhor, a repreensão é sempre uma carícia. Hoje estava lendo o capítulo 11 do profeta Oseias onde ele fala dessa carícia, desse amor de Deus por cada um de nós como se fôssemos essa imagem da ovelhinha que ele carrega nos ombros. As três qualidades de Deus, as mais fortes, são a proximidade, a misericórdia e a ternura. Deus está próximo de nós. Deus é misericordioso, nos perdoa tudo e tem uma paciência impressionante conosco. E é meigo, aquela coisa delicada de Deus, mesmo nas provas difíceis. É assim que eu o vivo.

- O senhor sorri, ri, mostra um grande senso de humor. Que coisas o divertem?

- O senso de humor é um atestado de saúde (risos)

Há mais de quarenta anos rezo todos os dias a oração para pedir bom humor a São Tomás More, um grande homem. Coloquei essa oração na nota 101 de “Gaudete et exsultate” (nota R: exortação “Sobre o chamado à santidade no mundo de hoje”, março de 2018), caso alguém queira vê-la. Nela pedimos ao Senhor a capacidade de rir, de ver o lado ridículo das coisas, de saber ver que a vida sempre tem algum sorriso. A frase começa assim muito linda: “Dá-me, senhor, uma boa digestão e algo para digerir” (risos) Já começa com senso de humor. E gosto disso porque o senso de humor humaniza. Pessoas que não têm senso de humor não têm graça.

- Muito sem graça.

- Até mesmo chateado consigo mesmo. No meu trabalho sacerdotal, às vezes aconselho alguém a se olhar no espelho para rir de si mesmo. E é difícil porque está faltando essa capacidade do humor. Bem, essas coisas não são muito dogmáticas, digamos. É um pouco de sabedoria de vida que me ensinaram e eu tento ajudar os outros com isso.

- Os medos são inerentes à condição humana. No entanto, o senhor, como Sumo Pontífice, costuma transmitir uma paz acolhedora. O senhor sente medo de vez em quando?

- Sim, porque sei que se errar em alguma coisa, meu exemplo vai machucar muita gente. Por isso tem algumas decisões que eu coloco na incubadora para que o tempo as amadureça. Há outras que as submeto a um sínodo para que toda a Igreja possa se manifestar.

- O senhor alguma vez pensou que teríamos um Papa argentino?

- Na época falava-se muito em Pironio (Nota da r: Eduardo Francisco, Cardeal Bispo da Igreja Católica). Lembro-me que um ramo do episcopado argentino, fechado e tradicionalista fazia a sua figura antipática, dizendo que a sua nomeação poderia prejudicar a Igreja. Foi ele quem inventou as jornadas da juventude... fez tanto bem à Igreja. E falava-se dele como um possível Papa. Ou seja, tivemos a ideia de um Papa argentino com Pironio. Depois não aconteceu por conta da conjuntura, ele morreu de câncer... E agora está para sair o estudo sobre um milagre dele e, se Deus quiser, no final do ano ele poderá ser declarado beato.

- Como profeta da esperança, o que o senhor pode nos dizer para alimentá-la?

- A esperança é a virtude humilde, a de todos os dias, à qual damos menos importância. Sempre falamos da fé, da caridade e do amor. E a esperança é a da cozinha, mas justamente porque é a da cozinha, é a de todos os dias. Não só não devemos perder a esperança, mas devemos cultivá-la. Fazer de nós um coração esperançoso, um coração com esperança. A esperança é tão fecunda! Um poeta a chamava a virtude humilde. Não podemos viver sem esperança. Se cortássemos as pequenas esperanças de cada dia, perderíamos a nossa identidade. Não percebemos que vivemos de esperanças. E a esperança teologal é muito humilde, mas é o que tempera os condimentos cotidianos. Pensar que talvez amanhã seja melhor não é fugir. É outra coisa.

- Gostei muito de uma apreciação a seu respeito que circulou por estes dias na Argentina: “Papa Francisco, o profeta da dignidade humana. Obrigada, como sempre.

- Orem por mim, por favor. Mas orem a favor, não contra (risos)

Fonte: TELAM 

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